Há coisas que só podem ser realizadas em grupo, seja porque tal realização exige trabalhos diferenciados ou porque só será feita com qualidade por especialistas. Em geral, cada componente de um grupo é especialista numa única atividade; eventualmente em duas – como é comum em bandas onde o cantor é também encarregado de algum instrumento. Quando alguém é especialista em muitas coisas, pode-se apostar que não será verdadeiramente bom em nenhuma delas, a menos que se trate de um daqueles palhaços de circo que tocam bumbo, chimbal, sanfona e gaita, tudo ao mesmo tempo; mas uma trupe de circo não é o mesmo que uma banda de música, com algumas excessões.

Numa banda, por princípio, a função do guitarrista é tocar (bem) a sua guitarra; a do baterista é tocar bem a bateria; e assim por diante. Isso, que parece óbvio, não é tão óbvio assim: você pode afirmar que um grupo será bom se todos os seus instrumentistas tocarem bem os instrumentos? E será bastante juntar-se os melhores jogadores disponíveis para ganhar um campeonato? Se assim fosse, um produtor poderia arregimentar as maiores “feras” do mundo e teria certeza previa de fazer o melhor disco do ano, por todos os anos do resto da eternidade. Que bobagem!

Há muitas funções para um músico de banda além de tocar ou cantar. Uma delas é ajudar o baterista a carregar aquele mundo de badulaques que eles usam. Outra é fazer boas relações com o técnico de som, pois se ele não for com a tua cara pode muito bem “derrubar” o show. Outra ainda é ir pagar o Imposto Sobre Serviços ou a anuidade da Ordem dos Músicos. E mais uma: conseguir, com muito jeito, que o baterista pare de tocar tão forte sempre que o saxofonista tem um solo. São mil e uma coisinhas e coisinhas para se fazer num grupo. Isto posto, quem faz o que? E por que?

Diz o ditado: manda quem pode, obedece quem precisa. Pode até ser um provérbio meio fascista, mas é apenas tão cruel quanto a realidade, ao menos quando se trata de um grupo em que alguém é dono dos equipamentos ou é quem faz os contratos de serviço.

Nesses casos, muito comuns, a distribuição de funções e a última palavra sobre qualquer pendência será dele – o Chefe. Ele tem poder, pela banal razão de ser também (e antes de tudo) o “dono da bola”. Você que não é o chefe, apenas obedece ou dá o fora, simples assim.
Nem sempre, porém, o dono das coisas tem cacife suficiente para mandar. Quando um dos componentes é notavelmente melhor que os outros do grupo – digamos, por exemplo, um cantor excepcional – pode acontecer de, mesmo não sendo ele o Chefe, tornar-se o “mandachuva”, baseado em que a banda se sustenta principalmente sobre ele, de forma que sua saída pode acabar com o projeto e o nome disso é “Autoridade moral!

Isso vale também para produtores, compositores e arranjadores. Mas esse é o tipo de situação que corrói a integridade do grupo e tende, no limite, a destruí-lo – se não fosse verdade, os Beatles estariam juntos até hoje, bem como muitas outras bandas famosas em todos os tempos.

Estamos falando de Ego. Do EU, que sou um cara até que bem legal, toco pra caramba ou quase isso, esbanjo talento e, além disso, tudo, tenho uma clara sensação de ter sido escolhido pelas Musas para revolucionar a Música universal, devo ser acatado pelos outros sempre que as minhas geniais opiniões forem diferentes. (ok, é apenas ironia tá?)

Claro que minha modéstia me impede de andar por aí declarando isso a todo momento (sem contar que “eles” não acreditariam). Ora: se Ego sou assim tão admirável, por que é tão difícil fazê-los “entrar na minha? Jean Paul Sartre responde: porque o” Inferno é o Outro “. Foi para resolver tal coisa que chegamos à Democracia…

Embora digam que se trata dos males o menor, Democracia funciona assim: você bota uma porção de Egos para conversar sobre seus respectivos egoísmos e tentar encontrar um ponto médio aceitável pela maioria; decidida a questão, a minoria engole o sapo e cala a boca. No caso de uma banda, o mais comum nesses “debates democráticos” é que chegue o dia do Juízo Final antes que algum dos Egos aceite o “inferno dos Outros” – e se isso não fosse verdade, Ozzy Osborne talvez fosse até hoje o vocalista da Black Sabbath.

Tocar bem é preciso, mas não basta; é preciso tocar com. Conversar é preciso, mas também não basta; é preciso dialogar, ou seja, tentar esclarecer os seus argumentos e fazer o possível para entender os argumentos do outro. Como essas coisas não acontecem por si mesmas, alguém precisa ser capaz de conciliar os Egos pessoais e artísticos do conjunto, o todo. Agora podemos definir: líder é aquele membro do grupo que consegue fazer todas as peças funcionarem bem e ao mesmo tempo. Como indica seu significado original – do inglês “to led”, conduzir – o líder consegue conduzir os Egos do grupo ao ponto mais consensual possível em relação aos interesses práticos do conjunto.

E como é que o líder consegue tal coisa? Ou, perguntando de outro modo: o que um líder tem que o não-líder não tem?

1. Carisma, que significa dom, graça, favor, beneficio, vantagem. É uma espécie de energia pessoal, uma capacidade de ser respeitado e ouvido com atenção em qualquer circunstancia, sem que para isso precise constranger ou tolher a necessidade de expressão dos seus parceiros;
2. Caráter, que é a marca explícita (porque “está na cara”) dos princípios éticos e estéticos em que ele baseia suas ações e suas opiniões; pode mudá-las, porém nunca para agradar alguém ou só para “deixar barato” aquilo em que não acredita;
3. Sensibilidade, para observar e compreender a personalidade de cada músico, aceitando-o como é sem por isso deixar de tentar influenciar mudanças de atitude ou opinião quando isso é necessário (e possível). Um líder precisa ser, antes de tudo, um pouco o psicanalista do grupo;
4. Paciência. Há situações em que mesmo um líder tem todos os motivos pra “chutar o pau da barraca”, momentos em que não basta ser líder, é preciso ser mágico, com autocontrole de um zen;
5.Competência: tocar bem, ser pontual nos ensaios e apresentações, ser constante, não ter preguiça, não ser sujeito a depressões ou histeria, enfim – um sujeito que gosta do que faz e está fazendo aquilo de que gosta, com qualidade e entusiasmo. Um líder, geralmente, estuda mais e sabe mais Música que os outros;
6. Jogo de cintura. É aquele jeitinho especial de dizer “não” de uma forma tão natural ou simpática que o Outro concorda na hora e acha ótimo.
O líder não tem e nem precisa ter qualquer poder, pois ele não manda em nada nem quer obrigar ninguém a fazer isso ou aquilo. O líder não é nem quer ser o chefe. Ele atua sempre como “mediador”, nunca como “autorizador”. Ele é o foco das reclamações e sugestões dos membros da banda, devendo só fazer a intermediação das divergências, filtrando as “besteiras” daquilo que percebe ser o melhor naquela ocasião. E deve fazer isso mantendo um bom clima de relacionamento com todos, intervindo firmemente quando necessário.

Costuma-se falar em vários tipos de liderança, conforme o modo como ela é exercida. O líder verdadeiro é também dito líder nato; é aquele cuja capacidade de liderança não nasceu, pois já faz parte dele desde o parto. Líder virtual pode ser o “fundador” da banda ou a idealizador musical do projeto ou o mentor financeiro das coisas ou ainda o produtor; pode ter ou não algumas das seis características citadas acima, mas sua função é mais de chefia do que liderança propriamente dita, pois tem sempre um último argumento que é irrefutável: “afinal, fui eu quem começou isto!”, ou “afinal, eu é que componho as músicas!”, ou “afinal, é a minha grana que está em jogo!”. Chamam de circunstancial o líder que nunca manifestou ou exercitou qualidades de liderança, mas pode desenvolvê-las e praticá-las em situações especiais, como um soldado que acaba virando herói quando lidera um pelotão cujo oficial comandante morreu em combate; há inúmeros casos de bandas que só “acontecem” depois que um membro aparentemente inexpressivo é levado a assumir seus escondidos dons de liderança.

E há também o falso líder: tem carisma, sensibilidade, paciência, competência e jogo de cintura; falta-lhe só o caráter, de modo que sua condução do grupo é feita de acordo com interesses particulares e crenças pessoais que consegue manter escondidas – Hitler e Stálin são dois exemplos bem conhecidos desse tipo de liderança, sempre desastrosa.
O líder deve ser ponderado sem ser relutante em tomar decisões; cauteloso sem fugir das responsabilidades que se apresentem; convincente sem usar isso para impor a sua opinião; cordial sem fugir de ser agradavelquando for preciso contrariar este ou aquele.

Quando não tem um líder, uma banda pode até sobreviver com um chefe; com dois chefes, jamais. Já no caso de lideres, dois é melhor do que um (desde que ambos sejam honestos, é claro). Seja como for, alguém terá que cuidar da distribuição de funções e arbitrar as diferenças entre os componentes do grupo. Cada pessoa é um Ego, cada grupo é um grupo, cada caso é um caso, mas não existirá uma única banda que não tenha passado por situações em que, se não houver liderança, “a vaca vai pro brejo”. Entre milhares de problemas que podem acontecer (e acontecem mesmo!) numa banda, vamos citar quatro, só para ilustrar o tipo de coisa que estamos chamando de problema e que só se resolve quando houver uma liderança.

Uma banda formada por ótimos músicos, quase todos já experientes em outros grupos, alguns inclusive com gravações de sucesso, convocou um guitarrista para dar mais brilho às coisas. Apresentou-se e foi contratado um jovem músico, tímido como uma donzela de romance medieval; tocando, porém, era uma “fera”, a ponto de chamar todas as atenções dos freqüentadores da casa noturna já em sua primeira performance com o grupo. O tecladista, que era tão bom de piano quanto de vaidade, antes de começar o ensaio no dia seguinte exigiu que o tal guitarrista fosse menos exibido e tocasse no máximo um terço das notas que tocara na noite anterior. Em outras palavras: ou ele ou eu. Sendo impossível substituir o reclamante, que já conhecia bem um repertorio grande, o guitarrista “dançou”. Pouco tempo depois, esse Big Ego dos teclados formou um trio paralelamente à banda (e com dois outros músicos) e convenceu o proprietário da casa: podia fazer um som melhor por um terço do cachê. Resultado: a banda “dançou”. Essa banda tinha dois lideres, uma deles sem caráter.

Num outro caso, o vocalista da banda era aquele com maior experiencia de palco, por isso sendo encarregado do controle (p.a.) de som. Por algum motivo ignorado, como costuma acontecer nos casos de antipatia, ele não ia com a cara do contrabaixista (que, alias, tocava muito bem), Assim, o cantor deu de aumentar o volume do canal da bateria sempre que o tal baixista tinha um solo. Depois de algumas caras feias, chegou o dia inevitável de um bate-boca muito desagradável, onde só não saiu porrada porque a turma do “deixa disso” interveio a tempo. Esta é a crônica de uma morte anunciada, pois o líder, que era o guitarrista, assumiu o controle de som, mas não conseguiu transformar o clima pesado que ficara desde a briga.

O arranjador de uma banda grande, com 14 músicos, deixou 32 compassos de solo-improviso para o trompete, 32 para a guitarra e 16 para o sax barítono. No meio do ensaio, logo após a primeira “passada” da musica, o solista do sax declarou que não ia poder tocar mais porque seu instrumento tinha se quebrado: se quisessem, podia fazer tudo com o sax alto, mas barítono “neca”. Embora seja difícil imaginar que um saxofone quebre assim, de repente, sem mais nem menos, o cara mostrava o instrumento para quem quisesse ver que as varetas não abaixavam, as sapatilhas não funcionavam, e pronto: C’est fini! O desânimo foi geral, pois era uma musica forte do repertorio, sem contar que o barítono era a base da secção de sopro, de modo que o ensaio parou ali e foi todo mundo para a padaria da esquina, afogar as magoas com um lanchinho. Sorte que essa banda tinha um vocalista que usou suas qualidades liderativas (ou femininas, val saber!) pra descobrir que o musico gostava especialmente daquela canção e ficara injuriado de ter menos espaço para solar que os outros, motivo pelo qual enfiara a boquilha do sax alto na campana do barítono, entalando-a de uma tal maneira que só um técnico conseguiria tirá-la de lá. Naquela noite tocaram sem o barítono, mas a pátria estava salva: o arranjador fez questão de aumentar para 49 compassos o solo do rapaz.
Tem também o caso da namorada do cantor, que era uma santa de boa e dançava muito bem, fazendo uns backing-vocals pra não parecer que estava ali só porque era bonita. Eles estavam realmente apaixonados, mas durante os ensaios e a gravação, a relação melou e o namoro acabou, mas eles se achavam suficientemente maduros e profissionais para continuarem trabalhando juntos, até porque já estavam fazendo shows e prestes a lançar seu trabalho. Quando a mixagem terminou, a moça começou a namorar o produtor da gravadora.. Nunca se saberá exatamente o que aconteceu a partir daí; sabe-se apenas que o “quebra foi feio” e a banda nem chegou a ser lançada.
Como se percebe, ser líder é uma coisa bem difícil. Mas não ser líder também é, pois implica em reconhecer e acatar com alguma humildade a liderança de quem tem tal capacidade. Seja qual for o seu caso, lembre-se que é preciso compreender claramente a sua função na banda, pois você estará investindo parte de sua vida – talento, energia e tempo – nesse projeto. Se você, no entanto, acha que tudo isto é bobagem, não dê bola: espere que o Destino bata à sua porta ou que Deus ajude a colocar todas as coisas nos seus devidos lugares.

 

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