Qualquer um sabe que a palavra “amigo” deriva de amizade, que é afeição, estima, ternura. Nem todo mundo sabe que a palavra “colega” deriva de colégio, que não significa “escola” mas grupo, turma, associação de pessoas para uma determinada atividade. Assim, toda escola é um colégio, mas nem todo colégio acontece num lugar onde se ensina e aprende coisas; por exemplo. Uma fábrica, uma Igreja, o Congresso Federal, a Polícia, são colégios. Uma banda – que é um grupo de pessoas associadas para fazer música – é um colégio, ou seja, nela todos são colegas, embora nem todos sejam necessariamente amigos. Feita esta diferença, vamos aos fatos.

Não é comum a gente se perguntar por que motivos gosta de alguém; a gente gosta e pronto. Quando Fulano declarou sua paixão por Beltrana, deve ter falado um monte de coisas bonitas a respeito dela e dos seus sentimentos por ela; se alguém, no entanto, perguntar ao Fulano por que ele gosta da Fulana, provavelmente vai ouvir umas gaguejadas seguidas de um ou dois adjetivos que respondem à pergunta, mas que estarão muito longe de expressar o que ele realmente sente. Porém a verdade, ainda que não seja la muito romântica, é que qualquer afeição só acontece quando provocada por alguma qualidade do objeto dessa sensação agradável que é a estima. Mesmo no tal de “amor à primeira vista”, será sempre a beleza física ou a expressão simpática ou o perfume ou o som da voz – alguma coisa objetiva – que faz as glândulas segregarem suas adrenalinas e endorfinas, causando, causando sensações de excitação e prazer. E não estamos falando apenas de sexualidade; qualquer músico já terá se apaixonado por um solo de guitarra ou sax. Dizemos que se trata de “amizade” quando duas pessoas têm afeição mútua, valendo dizer que têm, portanto, características comuns no que se refere à capacidade de provocar alguma espécie de satisfação um no outro.

Uma banda geralmente tem início com dois ou mais amigos; basta um ensaio para que se tornem colegas, pois é a atividade comum que determina o coleguismo. Quando uma banda se completa com músicos “estranhos”, estes se tornam colegas desde o primeiro ensaio. Depois de mil ensaios, é possível que todos tenham se tornado também amigos, posto que têm interesses e afeiçoes comuns onde cada um precisa necessariamente gostar do som que o outro faz – ou a banda não teria chegado aos mil ensaios com o mesmo time.

Pode também acontecer, depois de mil ensaios, que antigos amigos estejam começando a se odiar, tornando-se ex-amigos, como acontece ate nas melhores famílias e casamentos. Daí se conclui que uma banda pode, por definição, existir sem amizade entre seus membros; sem coleguismo, não. Os Beatles, para lembrar só um caso, sobreviveram três anos e gravaram pelo menos três álbuns num clima de muito coleguismo e pouquíssima amizade.

Os músicos de uma banda precisam colocar os interesses do grupo (isto é, o coleguismo) acima de tudo, inclusive da amizade. Ocorre que Música não é algo simplesmente técnico; é principalmente emocional, de pessoas que se emocionam fazendo um som que deve emocionar pessoas que o escutam. Mas isso – a emoção pela beleza sonora, puramente auditiva – não acontece senão numa pequena parte da música erudita e eventualmente do Jazz; na musica em geral, o que se passa é um envolvimento emocional que se liga a outros sentimentos além da simples musicalidade.

Nesse caso não basta que os músicos “apenas” produzam musica; é preciso transcender isso, sendo quase impossível imaginar que pessoas “friamente musicais” – ou apenas colegas – sejam capazes de obter apreciação do público. Moral da historia: pode-se montar uma boa banda apenas com coleguismo (ou profissionalismo); mas é quase impossível mantê-la sem amizade. “Secos e Molhados” (com a saída de Ney Matogrosso), “RPM” (com a saída de Paulo Ricardo), “Mamas & Papas” (com a morte de Mama Cass), “Sepultura” (com a saída do Cavalera) e os sempre citados “Beatles” (com as desavenças entre John Lennon, Paul McCartney e George Harrison) são alguns casos que testemunham em favor do que foi dito acima e convém sempre repetir: com coleguismo, a banda tem tudo pra dar certo; sem amizade, tem tudo pra não dar. Voce consegue imaginar o U2 sem Bono Vox ou uma volta do Queem sem Fred Mercury?

O erro mais comum a esse respeito – coleguismo e amizade – acontece quando se monta a banda, aceitando que alguém faça parte dela mais por amizade do que por competência musical. Caso banal: três amigos que “curtem” o mesmo tipo de som resolvem estudar musica para montar uma banda assim que já toquem o mínimo suficiente para isso. Dois têm talento (ou estudam pra valer) e uma não tem (ou é do tipo “vagal”). Resultado: um tempo depois, compram o equipamento básico e conseguem a garagem de alguém para ensaiar “os maiores sucessos dos próximos anos”. Todos sabem, inclusive o “surdo”, que o contrabaixo está uma droga, mas afinal o “cara” é superamigo, gente finíssima, quem teria coragem de botá-lo fora? E a banda não seria a mesma sem ele, caramba! Tantos planos por água abaixo, logo agora que a banda começou…

Também é freqüente – em bandas já consistentes e onde todos são realmente amigos – que um deles comece a “ficar pra baixo”, preparando mal suas partes, faltando ou se atrasando aos ensaios, contribuindo pouco nos arranjos e coisas do gênero. A tendência é “dar um tempo”, pois deve ser só uma fase; alguma coisa passageira deve estar interferindo psicologicamente; logo logo o amigão recupera o entusiasmo e “volta com tudo”. Às vezes isso é verdade, basta “dar um tempo e uma força”; problema mesmo é quando a fase vira período que vira sempre. Ser ou não ser (amigo), eis a questão!

Ninguém poderá dar grandes conselhos sobre essa questão. Vale o bom senso e cada caso é especifico. A amizade é sempre preferível, até o momento em que seja necessário abrir mão dela em favor do puro coleguismo. Afinal, ser colega também é uma coisa mutua, de duas partes que estão associadas por livre escolha de ambos em função de um objetivo comum; o colega, amigo ou não, que eta prejudicando o conjunto, ou “se toca” e sai do grupo ou “não se toca” e precisa ser eliminado, por mais desagradável que seja tal situação. Em qualquer caso é preciso tentar separar as coisas, embora seja bem difícil que uma amizade se mantenha a mesma quando é preciso romper os laços do coleguismo. A amizade sólida, sincera e desinteressada, costuma sobreviver. Uma forma de evitar aborrecimentos maiores é fazer a coisa certa no início, ou seja, não “empurrar com a barriga” na hora de formar a banda ou de trocar um músico – em outras palavras: amigos, amigos; negócios à parte.

Um caso particular de amizade é a namorada (noiva, esposa, concubina, “caso”, o que for). Talvez seja o tipo mais forte de amizade, na medida em que envolve emoções muito especiais alem de outros interesses em comum. Se você pretende incluir sua namorada na banda ou aceita que outro colga inclua a namorada dele, convém estar ciente de certos problemas, não menos problemáticos por serem geralmente pequenos. Um deles é o ciúme: é muito possível que ela receba “cantadas” no trabalho (e às vezes até nos ensaios, e dos próprios colegas!); você segura bem essa “barra”?

Outro: quando a sua namorada (e colega, não se esqueça) resolver aceitar um convite para ir jantar naquele clube chique, convite obviamente extensivo a você – o “cara” é cheio da grana e ela sempre morreu de vontade de conhecer aquele lugar -, você topa? Outro problema: se o baterista brigar com a cantora (que por sinal é também sua namorada) porque ela está travessando o compasso, você “fica na sua” e deixa a coisa rolar? Ou toma partido dela? Ou, caso o baterista tenha razão e você saiba disso, opina e arrisca “quebrar o pau” e ficar sem a moça? Ainda outro: você e ela tiveram uma briguinha dessas de namorado, mas você não acha que ela está levando “lero” demais com o tecladista? Hein? E mais unzinho: todo mundo tem que trocar de roupa no mesmo cubículo e vocês chegaram quase “em cima da hora” para o show; já que não vai dar tempo de separar machos e fêmeas, uma pergunta: você acha que toda nudez será castigada?

Outro caso muito particular de amizade é o parentesco. Nem todos os familiares brigam entre si, somente os normais. Há ate casos famosos de irmãos, primos, pais, às vezes famílias inteiras que conseguiram formar e manter um conjunto musical. Isso, no entanto, é mais complicado do que o caso dos namorados, pela simples razão de que a namorada pode tornar-se ex-namorada, mas a mãe, em qualquer situação, continuará sendo a mãe. Assim, convém pensar bem antes de aceitar que a mãe do guitarrista banque o equipamento da banda ou se torne sua empresária; antes tente imaginar se não há mais ninguém que possa fazer a mesma coisa, porque qualquer desavença mais séria entre os parentes pode ter influência negativa na banda. Como qualquer amizade, parentesco é sempre um risco a mais acrescentado aos muitos problemas inevitáveis de qualquer grupo. Se houver escolha, a melhor divisão de espaço é assim: a banda fica na garagem e a família fica em casa.

Talvez sejam ninharias, banais problemas, mas acontecem a todo momento na vida de todo mundo. Seja como for, um músico precisa ter consciência de que o amigo não é necessariamente o colega e vice-versa. Mas, como foi dito antes, a amizade é sempre desejável quando o assunto do grupo mexe com emoções. Por isso, meia hora em volta de uma pizza pode ser mais produtiva para a banda do que dez horas de ensaio.

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