Prazer, fama, dinheiro e respeito – nessa ordem – são os quatro grandes elementos que levam alguém a participar de um projeto musical. Haverá quem prefira trocar a ordem, dando mais valor ao dinheiro do que à fama, mas é bem raro conseguir um antes do outro. Há casos de gente que chega a ficar famosa rica porém precisa abrir mão do prazer de tocar para obter isso; também há artistas que acabam conseguindo respeito mas morrem na miséria. O fato é que sempre existem coisas, na biografia de qualquer um, que dependem da sorte, do destino, da coincidência, do mero e banal acaso.

“Alea”, em latim, é o dado, aquele cubinho de seis faces numeradas de 1 a 6. Trata-se de um objeto que representa materialmente o Destino. Desde suas origens o ser humano procura meios de obter algum controle sobre os dados. Até Júlio César, o homem mais poderoso com o exército mais poderoso do mundo em sua época, mostrava seus receios do futuro quando atravessou o riacho Rubicon para fundar o Império Romano: “a sorte será lançada”; neste caso, como se sabe, os dados não lhe foram propriamente favoráveis, pois morreria assassinado dois anos depois.

Na Grécia Clássica ninguém de bom-senso fazia nada sem antes consultar os oráculos, ainda que as previsões não fossem lá muito animadoras: “um grande rei vai perder o seu reino” era a previsão mais comum para os monarcas que iam à guerra. Hoje podemos consultar o tarô, as runas, o I-Ching, a Mãe Diná, astrologos do youtube e até os fantasmas ancestrais – basta um celular. Só que, agora como antes, a tecnologia ainda não parece suficiente para dar-nos um razoável controle sobre os acasos, de modo que muitos preferem “dar um jeitinho nos dados” antes de se arriscar a lançá-los.

O problema é que não se pode falsificar os dados da vida real, ao menos não por muito tempo e sem conseqüências nefastas. Quem depende de “alea” depende do aleatório.

Mesmo um “superstar” com vários discos de platina e ouro e prata não pode saber com toda a certeza se o seu próximo álbum será um sucesso. Não há talento nem marketing capaz de controlar a Sorte. Se o produtor da God Records assistir o seu video logo depois de ter seu convite para jantar aceito pela secretária, haverá mais chance da banda fazer sucesso do que se ele tiver brigado com a esposa no café da manhã ou ficado emperrado no trânsito durante duas horas antes de ouvi-la.

A menos que você possa controlar o tráfego e os problemas sentimentais dos produtores, resta-lhe o auxílio de Deus, ou dos anjos, ou dos gnomos, ou daquela fitinha do Senhor do Bonfim que veio da Bahia de Todos os Santos – e nem por isso o Esporte Clube Bahia é campeão mundial de nada.

Montar uma banda é sempre uma aposta. O jeito é deixar a parte do destino com o próprio Destino, tratar de fazer logo a música que nos dá prazer de tocar e, por causa disso, chegar a um “bom som”, com o qual podemos ficar bem conhecidos ( e até famosos ) e ganhar dinheiro, carreira na qual podemos batalhar pelo respeito do público, da crítica e dos colegas profissionais. Em outras palavras: o único meio de ajudar o resultado da aposta é fazer boa música, e o primeiro pré-requisito para se tentar fazer boa música é ter uma proposta – aquilo que responde à pergunta “que som nós vamos fazer ?”

Antes de discutir o gênero musical ou a formação instrumental da banda, essa tal de ‘proposta’ precisa começar com uma decisão fundamental: a atitude profissional que vai dar suporte aos itens práticos e musicais. Admitindo-se logo que o establishment ( o mundo como ele está hoje) é de economia e comunicação globais, e que a mídia faz ponte entre a indústria cultural e o mercado consumidor, podemos dizer que há três atitudes principais possíveis: armação, diluição e criação.

“Armar” um lance é utilizar nosso conhecimento musical para fazer uma coisa que não tem nada a ver com nossos gostos musicais mas que pode dar um retorno profissional rápido ( e às vezes rendoso ) . Isso acontecia, por exemplo, antes da mudança das leis eleitorais, quando a gente ‘juntava’ uma banda para faturar uma graninha nos comícios em época de eleição. Ou quando um bando de ateus monta uma banda ‘gospel’ porque as igrejas evangelicas estão crescendo e provocando um grande aumento nas possibilidades desse gênero como mercado de trabalho. A “armação” costuma não dar certo, principalmente quando se entra na praia dos outros – e “os outros” nem sempre são tão idiotas como os “armadores” imaginavam ou gostariam que eles fossem. Pra não falar que, nesse casos, está-se abrindo mão do principal, que é o ‘barato da coisa’, o prazer da música.

O lado oposto da “armação” é a criação. Monta-se a banda a partir de músicos que desejam inventar alguma coisa nova, alguma coisa diferente de tudo que está acontecendo. Esta é a atitude mais difícil, porque as coisas realmente novas (ou progressistas ou vanguardistas) costumam demorar muito para ser aceitas e consumidas regularmente. Toda música que envolve pesquisa, experimentação, criação, traz consigo um problema mais complicado do que em outras atitudes: a capacidade de comunicação, isto é, o lado comercial da coisa.

Ocorre que todos os criadores, em todas as épocas, suportaram tal dificuldade sustentados na convicção de sua arte, do seu talento; alguns conseguiram impor as suas novidades, muitos fracassaram, outros desistiram no meio do caminho. Daí que, como em qualquer jogo, é preciso jogar com as cartas que se tem, e a aposta depende da fé que você pode colocar nelas – a menos que você prefira blefar, mesmo sabendo que o Destino costuma ser cruel com os mentirosos contumazes. Além disso, se você não pode confiar na qualidade daquilo que está fazendo, talvez seja melhor “armar um lance”.

No meio termo entre armação e criação está a diluição, que é escrever com a sua própria caligrafia aquilo que já está escrito com a caligrafia dos outros. Trata-se de pegar, digamos, um frasco de perfume francês, juntar com quatro frascos de perfume vagabundo, e tentar vender cinco frascos de perfume “francês”. Isso tem um nome: falsificação. Em arte, é o ‘fake’, o falso, a imitação, aquilo que já foi feito antes e melhor. Se você quiser verificar pessoalmente um exemplo disso, basta ligar o rádio ou a TV: suas chances de ouvir coisas diluídas são de 99%. Se, entretanto, você quiser observar esse fenômeno da diluição analisando exemplares muito evidentes, compare o trabalho dos Beatles com o do Green Day – se você nem assim for capaz de compreender o que seja “diluição”, não devia estar perdendo seu tempo lendo este texto; experimente escultura ou dança, pois o seu negócio, com certeza, não é Música. Ou então é armação.

Só agora – que estamos no capítulo 3 desta série de textos e você já tem todos os músicos adequados devidamente associados para fazer a tal “proposta” – chegamos às coisas que interessam mesmo. Vocês discutiram até chegar a um consenso sobre a atitude que vai basear a proposta: armação, diluição ou criação. Convém deixar claro que não existe nisso uma escolha certa e outra errada, ou que uma coisa é boa e a outra é má; uma banda ‘cover’, por exemplo, quando consegue imitar com boa qualidade, pode proporcionar aos seus membros prazer/fama/dinheiro/respeito sem que se possa chamar esse trabalho de coisa “menor” ou falsificada, embora não seja criativa nem pretenda enganar ninguém. Pode-se, também, unir a diluição com a criação, como fazem as bandas que executam repertório alheio mas procuram colocar nele as suas características próprias, o seu estilo. Enfim, a escolha é livre, e não existe pecado em nenhuma delas, contanto que atinja seus propósitos.

Segue-se a opção do tipo de trabalho que se deseja. Há bandas de baile, de show, de igreja, de bordel, etc., e os músicos precisam saber o que se está propondo. Não adianta você convidar um emérito solista improvisador se o resto da banda pretende fazer ‘covers’, pois o carinha vai detonar o conjunto ou nem fazer parte dele. E não adianta trazer para uma banda de blues um tecladista que só toca lendo partituras – ou será que vocês, além de escrever música, acreditam em blues escritos?

É imprescindível que fique perfeitamente clara a “praia” em que a banda pretende atuar. Não adianta dizer: estamos montando uma banda de rock. Qual rock, cara-pálida? – blues, rhythm’n’blues, country, rock’a’billy, heavy metal, trash, death, punk, jovem guarda, fusion, funk, acid, technopop…? E não adianta dizer: estamos montando um grupo de pagode. Qual pagode branquinho? – samba tradicional, de roda, de toco, de quadra, de enredo, de partido alto, de fundo-de-quintal…? cuidado com os rótulos: geralmente não querem dizer grande coisa num mundo e numa época em que há uma infinidade de variações e possibilidades. Se o nome for ‘world music’, então é preciso saber antes a latitude e a longitude: refere-se a tudo que ainda não tem um nome próprio de batismo.

Escolhidos os músicos, a atitude, o tipo de trabalho e a praia musical, convém especificar tudo que for possível. Numa banda que se pretende criativa: quem compõe, quem faz os arranjos, quem faz o quê ? Numa banda ‘cover’: copia-se uma determinada banda, um grupo semelhantes de bandas, dois ou três discos escolhidos? E essa cópia é estrita ( do jeitinho que está na gravação), com arranjos novos ou com grande liberdade de improvisação? Os músicos do grupo precisam estar em perfeito acordo sobre isso antes mesmo de ligarem as caixas acústicas e afinarem seus instrumentos.

Tudo isso decidido, chegamos enfim aos ensaios. Pensando melhor, ainda não está na hora de tocar; falta ficar bem combinado o que vai acontecer durante e depois do período de ensaios. Vamos gravar umVideo profissional ou apenas com celular? Para mostrar a quem? E a grana do estúdio? A gente vai começara fazer uma poupançazinha para esses gastos ou depois a gente vê? Ou vamos preparar um repertório para começar tocando nos bares da vida? Vamos deixar pra pensar nisso quando a banda já estiver meio-pronta?
Bandas meio-prontas serão eternamente meio-prontas. Se um trabalho pronto já é difícil de ser vendido, qual a possibilidade de um grupo mambembe que nem sabe ao certo aquilo que deseja fazer ?

É preciso ensaiar para alguma coisa, tendo-se em mente desde os itens básicos ( como a manutenção do equipamento, por exemplo ) até os objetivos mais remotos ( como, também por exemplo, o que você vai responder na entrevista no FANTASTICO, já que mais cedo ou mais tarde toda a população mundial terá comparecido àquele programa de TV, até você ).
Uma banda não é uma máquina, que se pode programar com todos os detalhes, principalmente quando os músicos têm que manter outras atividades enquanto não podem contar com rendimentos da banda que está sendo montada; nem tudo pode ser previsto e combinado. Mas tudo que puder ser previsto e combinado, independente dos azares de percurso, deve ser. Andy Warhol profetizou ( e essa profecia se cumpre cada vez mais ) que todo mundo terá direito a 15 minutos na mídia; o problema de uma banda, que é sua proposta, pode ser resumido na seguinte questão:
O que vai acontecer quando os 15 minutos terminarem ?

 

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